Telma
"Cegamos" o aluno. É porque somos alfabetizados que ouvimos e vemos
coisas que, para os que ainda não sabem ler e escrever, não estão lá. Um
exemplo simples: muitos professores estão convencidos de que o branco
entre as palavras é uma coisa que se pode escutar. Isso só pode
acontecer a uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e leitura
está de tal maneira organizada em cima da sua própria competência
leitora que nem passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que
jamais as crianças vão encontrar no falado os elementos que permitirão
separar as palavras. E é claro que, dessa perspectiva, ao vê-las
escrevendo tudo grudado, imagina-se que há uma disfunção, um problema.
Não há. Trata-se de um momento necessário do processo. É preciso
aprender a escrever assim para depois pensar na questão das separações.
Colocar-se
no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em
"palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente
alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são
palavras. E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de
que os artigos sejam palavras. Não estou dizendo para não usar a
terminologia, mas é preciso ter claro que o que se está nomeando não é
exatamente o que as crianças pensam que é. Certa vez, perguntei a uma
menina o que era "palavra". Ela respondeu: "É o que está escrito na
Bíblia." E eu insisti: "Por quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de
Deus". Imaginar que é obvio escrevermos exatamente como falamos, na
mesma ordem, só acontece se não nos colocamos no lugar de quem está
aprendendo. Porque, ao assumir essa perspectiva, somos obrigados a olhar
de outro jeito. Intuitivamente, ninguém é capaz de fazer isso.
Só
com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa
diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que,
para mim, não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir
sobre o que eles estavam pensando. Até o dia em que li sobre a
psicogênese. E aí fiquei furiosa comigo mesma, porque já tinha visto
aquilo tudo. Qualquer alfabetizador já viu crianças escrevendo com uma
letra para cada sílaba ou com menos letras. Na verdade, não dávamos
importância. Não olhávamos para isso como uma ação inteligente delas.
Sem a ajuda da ciência, não se pode recuperar uma visão que já se teve,
mas que foi apagada, numa espécie de esquecimento cognitivo.
Há
muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava
explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio,
as crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta
um pedaço de escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com
estranheza, pois essa ideia de hipótese era muito estranha à cultura
local. Até que um deles puxou uma folha antiga de sua pasta. Ele se
chamava Norberto, havia feito um desenho e assinado NBT.
Era
recém-alfabetizado e ainda tinha o documento de suas próprias hipóteses.
Foi uma situação interessante ver um adulto recuperar esse
esquecimento. Nós não nos lembramos de quando não sabíamos calcular,
escrever, ler. Nós não temos a memória viva do que é ser alguém que tem
de aprender, que não sabe nada sobre determinada coisa. E os
professores, como tais, só podem recorrer ao conhecimento cientifico
para recuperar isso. Porque, via bom senso ou afetividade, não se chega a
lugar algum.
Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a turma avançar nas hipóteses de escrita?
Telma
Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e
frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que
isso os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada.
Há uma dificuldade
enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja
ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará
que está certo", "vai fixar o erro".
Na verdade, falta compreensão da
diferença entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o
produto que a criança está realizando. Toda a tradição de correção com
caneta vermelha e de cópia dos erros vem daí - existe o não saber, o
saber errado e o saber certo
E é claro que isso corresponde a uma
concepção de aprendizagem, para a qual o ensino, por sua vez, cuida de
evitar que se fixem na memória ideias erradas. Na visão construtivista,
com uma abordagem psicogenética da alfabetização, fica claro que aquela
escrita, errada segundo os padrões convencionais, faz parte de um
processo do aluno. E que, naquele momento, é preciso estimular o máximo
possível a reflexão sobre o que se escreve. É possível e necessário
subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar informações
para obter um produto correto.
A segunda versão é uma leitura
parcialmente equivocada do que chamamos de conflito cognitivo. Ou seja, o
que faz um menino, que está lá, bem satisfeito da vida, escrevendo uma
letra para cada sílaba e conseguindo se virar assim, abandonar essa
hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão elegante? Como é que ele
avança? Além da hipótese de que, para cada vez que abrimos a boca,
usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não pode escrever uma
mesma letra repetida, escrever com poucas letras e, de forma alguma,
escrever com uma letra só. Mas, para alguns, duas letras também é muito
pouco. A média estatística da exigência é em torno de três letras.
O que
acontece com uma língua como o português, com uma quantidade enorme de
palavras dissílabas? Toda vez que a criança escreve um dissílabo, tem um
problema, pois precisa colocar alguma coisa para não cometer um
"sacrilégio". Essa contradição entre os esquemas explicativos que ela
tem para a leitura e a escrita é que dá origem e espaço ao que chamamos
de conflito cognitivo.
A partir dessa explicação, os professores
fazem uma assimilação de que é preciso produzir situações conflitivas o
tempo todo. Mas o conflito ou é do aprendiz ou vira uma conversa sem
nexo para ele.
Uma das atitudes equivocadas mais clássicas nessa linha é
mandar contar os pedaços de uma palavra falada. Por exemplo, para
"borracha", bater três palmas, uma em cada sílaba. Então, o professor
escreve a palavra, pergunta quantas letras tem e diz: "Você pensa que
abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar três letras, mas eu
estou mostrando que não é, e que borracha, no papel, tem oito letras".
Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não faz o menor
sentido. E certamente não fará quando estão colocando três letras. Pode
ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando quantas
vezes a boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança
começa a batalhar para colocar as letras. Ou você pode - e para isso é
preciso conhecê-la intelectualmente - dizer: "Você sabe fazer melhor do
que isso. Pense mais um pouco".